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De cestas fake a pousada de luxo: o ‘balcão de negócios’ operado no coração do poder

De cestas fake a pousada de luxo: o 'balcão de negócios' operado no coração do poder

Notícias do Tocantins  – Um “verdadeiro balcão de negócios” instalado no coração do poder do Governo do Tocantins. Assim definiu o ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao ler o voto que afastou do cargo o governador Wanderlei Barbosa (Republicanos) e a primeira-dama, Karynne Sotero, por 180 dias.

A Corte Especial do STJ também proibiu o casal de frequentar o Palácio Araguaia, a Assembleia Legislativa e repartições públicas por um ano. A medida foi tomada após a segunda fase da Operação Fames-19, deflagrada na quarta-feira (3/9), que investiga desvios milionários em contratos de cestas básicas durante a pandemia e a posterior lavagem de dinheiro por meio de um resort de luxo.

Segundo a Polícia Federal, o rombo aos cofres públicos ultrapassa R$ 73 milhões, envolvendo agentes públicos, políticos e empresas contratadas para simular a entrega das cestas.

Ligação com a primeira-dama

O fio da meada do escândalo foi o esquema de desvio de verbas por meio da compra de cestas básicas. A investigação revelou que o principal instituto contratado, o Idegesec – considerado pela PF “umbilicalmente ligado” à primeira-dama Karynne Sotero – utilizava métodos fraudulentos para burlar a fiscalização.

Diálogos recuperados de celulares mostram operadores do esquema pegando cestas “emprestadas” de empresas para simular o fornecimento. Em uma das conversas, um deles afirma: “tô com o carro aqui cheio de cesta, eu tô doido pra botar essa cesta lá e esperar amanhã fazer a visita lá na SETAS né, fiscalização, e depois colocar novamente a cesta no carro e entregar lá pro ROSALINO, que ela é emprestada né, ele me emprestou só (…)”

As conversas também revelam a criação de “listas fantasmas” para justificar a entrega dos benefícios. Um interlocutor pede a um dos investigados: “…tem como você ver com o PC (PC Lustosa) ou você conhece alguém que tenha uma lista de nomes… nomes, CPFs, a gente precisa de uns mil e quinhentos nomes ainda pra completar a lista, tá? Pra fazer a prestação de contas lá das cestas que o TIAGO não tem né, e aí tá precisando desse restante.”

A PF aponta que Karynne mantinha influência sobre o instituto mesmo após deixar formalmente a presidência, corroborado pelo fato de seu ex-marido, Paulo César Lustosa (PC Lustosa), ainda deter as chaves da entidade.

A teia parlamentar e as “bênçãos” em espécie

O esquema não se limitou ao Executivo. As investigações indicam que dez deputados estaduais teriam destinado mais de R$ 38 milhões em emendas parlamentares para empresas ligadas à fraude, recebendo em troca uma comissão que variava entre R$ 10 e R$ 13 por cada cesta básica.

Planilhas de controle de propina apreendidas pela PF traziam nomes de parlamentares, além de anotações manuscritas em notas fiscais, como: “13 reais por cesta – pago.”

Os pagamentos eram feitos em dinheiro vivo, tratados nos diálogos como “bênçãos”. Um servidor escreveu: “Já entreguei a bênção de hoje. Amanhã tem mais.”

Na casa da ex-deputada Valderez Castelo Branco (Republicanos), a polícia encontrou cerca de R$ 700 mil em espécie. O inquérito alerta que o aumento no valor das emendas aprovado pela Assembleia poderia ampliar ainda mais a “dissipação de recursos do erário estadual”. A ex-parlamentar garante que o dinheiro tem origem lícita e comprovada.

PF encontrou cerca de R$ 700 mil em espécie na casa de ex-deputada

Ex-marido da primeira-dama e o “investidor-anjo”

A PF descobriu que parte das propinas era paga em espécie. Paulo César Lustosa, o PC Lustosa, ex-marido da primeira-dama, recebeu R$ 1,3 milhão das empresas investigadas e seria responsável pela “negociação de propina em contratos” do governo do Tocantins.

A lavagem de capitais ocorria principalmente por meio da construção da Pousada Pedra Canga, empreendimento de luxo em Taquaruçu avaliado em R$ 6,3 milhões. Os filhos do governador figuravam como proprietários formais, mas receberam aportes de R$ 2,4 milhões diretamente de Wanderlei Barbosa e do núcleo familiar.

A documentação contábil do resort tentava justificar os aportes como investimentos de um “investidor-anjo”, artifício que, segundo os investigadores, serviu para ocultar a origem ilícita do dinheiro.

PC Lustosa e ex-marido da primeira-dama Karynne Sotero

Selfies com dinheiro

Outro personagem que chamou a atenção da PF foi Marcus Vinícius Santana, operador financeiro ligado ao governador. Ele aparece em selfies com maços de dinheiro obtidas durante a investigação. Segundo a polícia, ele atuava no repasse das propinas, movimentando recursos desviados das emendas parlamentares e dos contratos emergenciais firmados na pandemia.

Em uma das selfies, Marcus Vinícius mostra maços de dinheiro.

O desdém que custou o cargo

O estopim para o afastamento foi a renomeação de Marcos Camilo como chefe de gabinete. Ele havia sido exonerado na primeira fase da operação, mas voltou ao cargo por decisão de Wanderlei. Para o ministro Campbell, o ato foi um “desdém pelas apurações” e prova da “continuidade delitiva”.

Na decisão, o magistrado afirmou que o governo do Estado havia se transformado em um “verdadeiro balcão de negócios” e que o governador era chamado de “guloso” pelos próprios operadores, por exigir “altas taxas de retorno”.

Wanderlei e Karynne proibidos de frequentar Palácio e Assembleia

Além do afastamento, Wanderlei e Karynne foram proibidos de frequentar o Palácio Araguaia, a Assembleia Legislativa e repartições públicas por um ano. Para o STJ, a medida era necessária para evitar a reiteração dos crimes e preservar as instituições.

O que dizem os citados

Wanderlei Barbosa

“Recebo a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) com respeito às instituições, mas registro que se trata de medida precipitada, adotada quando as apurações da Operação Fames-19 ainda estão em andamento (…). Reforço que, por minha determinação, a PGE e a CGE instauraram auditoria sobre os contratos mencionados e encaminharam integralmente as informações às autoridades competentes. Além disso, acionarei os meios jurídicos necessários para reassumir o cargo de governador, comprovar a legalidade dos meus atos e enfrentar essa injustiça, assegurando a estabilidade do Estado e a continuidade dos serviços à população.”

Karynne Sotero

“Reitero meu respeito à decisão do STJ e às instituições, ressaltando que irei dedicar-me plenamente à minha defesa, convicta de que conseguirei comprovar minha total ausência de participação nos fatos que estão sendo apontados.”

Marcos Camilo

“Neste período em que estive afastado, prestei todos os esclarecimentos às autoridades em relação aos valores encontrados, uma vez que são totalmente lícitos e lastreados. Provarei minha inocência no decorrer do processo, quando me for garantido o direito à ampla defesa e ao contraditório, como deve ser no Estado democrático de direito.”

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